sábado, 20 de junho de 2015

Homenagem ao falecido bombeiro João Humberto Serpa

O senhor João Serpa era 22 anos mais velho do que eu. Quando eu tinha 10 essa diferença parecia maior e a atitude perante ele era, naturalmente, do maior respeito. Na Praça da República encontrava-o várias vezes, nesse tempo da minha infância. O senhor João Serpa andava sempre pelos bombeiros e por vezes quedava-se, delicado e atencioso, perante a curiosidade dos rapazes que o viam sair do quartel e estacionavam as suas bicicletas junto a um daqueles saudosos bancos encarnados. Sentado, contava estórias dos bombeiros com um interessante sentido pedagógico, rodeado de semblantes ávidos de peripécias. Cedo os bombeiros me tocaram na sensibilidade, pois, morando nos primeiros anos de vida na Rua de São João, junto às escadinhas, o silvo da sereia entrava-me por casa dentro! Por isso, as palavras do senhor João Serpa despertavam-me a maior curiosidade. Lembro-me de ele explicar que os carros dos bombeiros, apesar da urgência, tinham que respeitar as regras de trânsito - aqui está o sentido pedagógico que referi há pouco. Mais ou menos dez anos depois tornei-me bombeiro. Não foi indiferente a esta "vocação" o facto de, depois da Rua de São João, ter vivido na Rua Serpa Pinto, sempre com os bombeiros à ilharga. Mas posso dizer, com convicção, que também fui bombeiro por causa do senhor João Serpa!

quarta-feira, 4 de março de 2015

Máquina de contar notas

Fui hoje fazer um depósito no meu banco. Entreguei as notas e o caixa contou-as à mão. Se tivesse usado aquela máquina de contar notas que tinha ao seu lado não me teria lembrado de uma estória que remonta à minha infância.

Eu era uma criança, um adolescente. Preocupado com a educação e o desejo de me responsabilizar cedo (não sei se o conseguiu, mas se o objetivo não foi alcançado é sobre mim que impende a falha) meu pai encarregava-me, algumas vezes, de ir ao Banco Português do Atlântico fazer o depósito do "apuro" - as receitas diárias da sua mercearia e talho.

Levava as notas em maços agrupados pelo respetivo valor (20$00, 50$00, 100$00...), feitos meticulosamente pela senhora D. Gabriela Bulcão, a caixeira do estabelecimento, de uma inquestionável honestidade, que os comprimia entre elásticos cruzados.

Com uma pasta de cabedal seguia até ao banco com a indicação de não me distrair fosse com o que fosse. Penso que ainda hoje seria possível uma criança transportar dinheiro desta forma sem ser importunada, numa terra que preserva os seus brandos costumes, felizmente.

Entrava no banco, na fila do caixa e com a cabeça pouco acima do balcão entregava o dinheiro. Ficava, sempre, estupefacto com a velocidade com que o funcionário contava as notas. Era estonteante a forma como os dedos vibravam sobre os maços.

Quando meu pai me encarregava desta tarefa, quase sempre preferia ficar a andar de bicicleta na Praça da República, numa altura em que se reuniam por ali mais de 20! Mas o gosto e a renovada surpresa de ver a manipulação das notas eram suficientes para ir fazer o depósito menos contrariado.

Hoje, quando fui ao meu banco e o funcionário contou as notas à mão, bem mais devagar, lembrei-me desta estória. Quem me atendeu foi o filho do senhor José Lobão, o caixa do Banco Português do Atlântico naquele tempo.

Há 40 anos estava eu longe de imaginar que haveria de existir uma máquina tão rápida como as mãos do pai do Rúben!

segunda-feira, 2 de março de 2015

Senhor dos (meus) Passos

No primeiro dia de março do ano de 2015 ocorreu a solenidade do Senhor dos Passos na cidade da Horta.

A propósito lembrei-me, agora, desta celebração num dia em que nela tive especial (para mim) participação.

Foi há... 20 e tal, talvez 30 anos!

Antes da procissão, na igreja de São Francisco, celebrou-se a missa, onde escutei provavelmente pela última vez num sermão o saudoso padre José Correia da Rosa.

Perante uma assembleia repleta arrebatou-se na grandeza da sua voz, profunda e inflamada, brotando daquele corpo mesquinho. Um contraste que sublimava a incomparável presença no ambão (não cheguei a vê-lo no púlpito, mas sem ter vivido esse tempo parece-me sentir dele saudades).

O padre Júlio da Rosa, terminada a eucaristia, procurou no fundo da igreja voluntários para levarem o andor do Senhor dos Passos que percorreria as principais artérias da cidade, numa tarde melancólica, coberta de nuvens densas e escuras.

Cheguei-me à frente, com toda a generosidade dos meus 20 anos bem feitos, sem ter a mais ténue consciência de que naquele domingo cinzento iria sentir, na carne, a Via Sacra que neste tempo evocamos.

Apesar de haver suplentes, talvez pela minha juventude, nanja pelo perfil franzino que apresentava (e ainda apresento), fui quase sempre titular nessa dolorosa caminhada entre a confiança na bondade de Jesus Cristo e a dúvida sobre se teria abandonado este Seu servo.

Os que só conhecem de vista a imagem e o andor do Senhor dos Passos perante quem hoje ajoelhamos na Matriz da Horta deixar-se-ão enternecer e cativar em devoção àquele madeiro. A minha relação com este Jesus é menos afável...

Para mal (ou talvez bem) dos meus pecados a dita representação d'Ele com a Cruz às costas mostrou-me bem (salvas as devidas distâncias e a ousadia da comparação) quanto Cristo padeceu no curto, em distância, mas longo em sofrimento, caminho do Calvário.

Tive o desplante e a falta de humildade de, em tal dia, ao longo das ruas Conselheiro Medeiros e Walter Bensaúde, julgar-me tão vitimado quanto o Filho da Virgem das Dores, mas outro pensamento não me entrava na cabeça.

É que os Simão de Cirene que me acompanharam mediam todos mais de 1,70 m (o registo do meu Cartão de Cidadão) e boa parte deles não teria ido à tropa. Os passos desacertados e a inclinação dos troncos que sustentam a enorme figura do Filho de Deus claudicando fizeram-me sentir dezenas de quilos sobre o meu ombro direito, as costas, as "cadeiras" (como dizia minha avó), as pernas, os joelhos e os pés.

Não perdi a fé, pois acredito que Deus escreve direito por linhas tortas. Atento à Sua voz, como manda a Igreja Católica, quis perceber que o Senhor me mostrou que só dá nozes a quem não tem dentes na ausência da mínima noção das nossas capacidades.